quarta-feira, maio 03, 2006

Irremediavelmente maio


Década de oitenta, Curitiba, é início de maio e uma porção de crianças metidas em suéteres de lã tricotados pela avó se amontoam no salão de festas. Outras mais vão chegando, a campainha soa em curtos espaços de tempo. Meninas com gorros coloridos, algumas muito pequenas, piás arteiros descendo as escadas em correria. A maioria traz presentes embrulhados em papéis de seda. Crianças não se importam em desejar feliz aniversário, a felicidade é algo óbvio demais. No toca-discos, os trapalhões cantam que na vida é tão bom ter amigos do peito, amigos de fé igual a eu e você. As crianças brincam e pulam com as mãos engorduradas de risólis de carne, alguém vem ralhar comigo porque sujei a toalha de aniversário. Meu tio chega e quer um abraço, ele me espeta o rosto com sua barba rala e eu tento fugir, esbaforida, pra perto das outras crianças. Algumas tias com perfume muito forte conversam num canto, eu lembro do cheiro da jaqueta de couro do meu pai, rindo alto com seus amigos da firma. Sempre tive medo de homens com bigodes. Alguém apaga a luz, acho que é minha mãe, e em seguida começo a ouvir o coro desafinado do parabéns pra você. Todo mundo se amontoa sobre mim, eu fico pequenininha, em pé numa cadeira bamba. Nesse momento chega Bruno, bastante atrasado pra festa. Vejo-o parado na porta do salão com um embrulho amarelo nas mãos e gel nos cabelos. Me sobe um rubor, queimando as bochechas, mas no escuro e à luz das velas do bolo ninguém vê a minha vergonha. Nem escuto mais o parabéns, saio em disparada pelo quintal da casa. Lá fora está geando e o vento sopra violentamente. Sinto só o meu rosto queimar, vermelho, ardido, e escondo-o entre as luvas de lã que minha vó havia tricotado naquele inverno.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Um dia fiquei a tarde inteira pensando no que faria a seguir. Pegar minha trouxa de roupa e comida e sair pelo mundo ou voltar pra casa. Sentado acomodado na sombra, o dia era de sol quente, sobre os galhos papagaios diziam num tumulto de bicos. - Volta! Volta! Que tem pão quente.
Voltei pra casa, pensei que ninguém tinha percebido que meu rosto queimou, vermelho de vergonha da fuga falida. Hoje depois de tanto tempo minha mãe disse que ficou me cuidando a distância . Não tinha sombra a minha volta naquela tarde além da arvore cheia de papagaios.

9:52 AM  
Blogger Vizionario said...

Gel no cabelo: clássico e indispensável. Boa a dos trapalhões tb.

11:23 PM  
Anonymous Anônimo said...

Boa a narrativa, um pouco frustrante a fuga quase não literária do conflito.

1:41 AM  

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