segunda-feira, março 20, 2006

Hace un año que...

25/03/2005
El mundo es ancho y ajeno

Todo mundo sabe, a cozinha é o melhor lugar da casa. Soube disso ainda pequena, quando sentava com a bisa Rosa em sua velha casinha de madeira na campina do siqueira pra comer broa sentindo o bafo quente do fogao à lenha. Quase vinte anos depois, e apesar de ser tão habilidosa cozinhando quanto um enxadrista lutando sumô, passei por muitas e diversas cozinhas até chegar à de dona Angela, que vive com suas quatro filhas mulheres numa ilha tranquila do lago Titikaka. A cozinha de dona Angela fica numa parte isolada da casa e não tem luz elétrica, como toda a ilha de Amantaní, mas em seu teto de zinco há uma porção de furinhos que deixam entrar feixes naturais de luz, e assim se pode ver panelas de ferro, tijelas de barro, uma boneca suja e sem uma perna abandonada no canto escuro, maços de plantas e ervas que em poucos minutos virarão chá. Quando chegamos em sua casa no sábado de manhã, Irma, a mais velha das quatro filhas, preparou nosso almoço na Uncha, um pequeno fogao de barro que deixa tudo más rico: ovos cozidos, batatas, oca - um tipo de tubérculo meio doce - e sopa de quinua, cereal muito usado na culinária andina. Logo em seguida a pequena Fabíola veio nos cumprimentar, sorrindo contente para os visitantes. Fabíola tem 3 anos e é a única neta de dona Angela. Suspeito também que seja a dona da boneca sem perna. Irma e Ester, a mamãe de Fabíola, conversavam em quechua quando senti um perfume saindo da chaleira. Irma explicou que fazia um chá de muña, "-bom pro estômago e cansaço". Depois percebi que as cholas sempre trazem um galhinho no avental pra cheirar enquanto sobem e descem os morros de Amantaní, e fizemos isso também, ainda que fosse só uma desculpa pra sentir o delicioso aroma da muña. Irma conta que sua terra foi batizada de Amantaní porque os Incas se "amaram" muito quando ali chegaram. Não posso acreditar nessa versao porque os Incas falavam quechua e não castellano, ainda que seja uma história bonita. De tarde caminhamos por boa parte da ilha. Vimos templos onde os antigos shamans faziam rituais para a deusa da terra Pachamama, oferecendo sangue de lhama e flores em troca de uma boa colheita. Vimos homens pequenininhos carregando nas costas 10 quilos de pedra para construir uma calçada turística. Diz-se que um deles ficou mudo de felicidade ao receber um relógio de presente. E que em alguma parte da ilha de Amantaní um turista se sentia livre por arrancar do pulso essa prisão, esse calaboço de tempo. De noite jantamos à luz de vela em nosso quarto, de onde se vê o imenso lago Titikaka pela janelinha quadrada. E logo veio Irma apertar minha cintura numa saia de chola e me vestir com trajes típicos, enquanto Pedro recebia de nossa anfitriã gorro e poncho coloridos. Assim disfarçados e com a pança cheia de quinua, fomos levados a uma festa local onde dançamos os hueños amantanienes bebendo uma cerveja cusqueña bastante quente. No dia seguinte Ester nos traz o café da manha, um último mimo aos viajantes. Chove muito e temos que partir. Do trapiche, as cholas se despedem com tristes acenos. Do barco, japoneses-belgas-peruanos-ingleses-galegos-brasileiros respondem com um lago inteiro dentro dos olhos.
São sete e meia da manhã, mas isso nao sabemos. Pedro deixou seu relógio na ilha de Amantaní pra sempre.

publicado em www.aindanaestrada.theblog.com.br

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

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»

2:17 PM  

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