sexta-feira, fevereiro 17, 2006

insônia ao lado

Lúcia não pode dormir. E dessa vez não é culpa da gata Cleo nem das habituais e torturantes tarefas escolares. Enfiada no travesseiro com as iniciais que sua avó bordou, Lúcia espera o sono vir passear e lhe dar carona. Mas vai ficando tarde e suas pálpebras não querem viajar esta noite.

Na pequena gaiola embrulhada em papel de parede que Lúcia chama de quarto, ou canto, ou alguma palavra inventada por meninas da sua idade, a escuridão permite perceber melhor os sons da rua. Escuta um carro virando a esquina muito lentamente e pessoas – mais de duas, ela tem certeza – discutindo bobagens embriagadas.

Apesar do breu absoluto, Lúcia sabe de cor todas as coisas ali escondidas ou espalhadas. A xícara meio quebrada com dois dedos de café vencido. Um calendário do ano passado com imagens que não envelhecem nunca. Um pé só – Lúcia pensa que o esquerdo – do seu sapato preferido que refugiou-se debaixo da cama, a maior de todas as gavetas.

Inexplicavelmente, a existência de certas coisas começa a perturbar Lúcia, como uma caixa encapada com papel lilás que há tempos mora no fundo do armário. Incomoda-a que tenha estado tanto tempo fechada, repleta de cartas mudas como peixes adormecidos. Mas o pior está logo ali, ao alcance dos dedos. Sobre o criado-mudo, um pedaço de papel arrancado do caderno de matemática com um número de telefone riscado a lápis. Quase marca d’água.

Lúcia não pode dormir e não é sua culpa. Ela sabe que não irá dormir enquanto seu número de telefone estiver anotado na outra metade do papel quadriculado, com as beiradas também rasgadas, e que possivelmente se encontra debaixo de um livro de 500 páginas e 155 capítulos em cima do criado-mudo do quarto de Daniel, que não consegue pregar os olhos embora já passe das quatro horas.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Your are Excellent. And so is your site! Keep up the good work. Bookmarked.
»

2:17 PM  

Postar um comentário

<< Home