domingo, fevereiro 12, 2006

f.22

Foi numa época em que eu costumava enquadrar paisagens. Eu fotografava pra um jornal pequeno e sem importância mas gostava que todas as ruas e nuvens e gentes e cães vadios morassem por alguns instantes entre a cortina e o espelho da minha objetiva fotográfica. Não havia prazer maior que me sentir dona das coisas.

Menos de você, que sempre foi imenso demais pra caber no meu retângulo de 24 por 36mm. Fotografar você era quase como apalpar o vento, cheirar uma música, morder essa chuva fina que forma agora um véu prateado na minha janela. E também não haveria porta-retrato do qual você não escapasse. Mesmo que houvesse, você me faria caretas horríveis toda vez que eu te olhasse ali pausado, preso por ganchinhos ou ímãs coloridos, talvez esmagado entre duas placas de vidro, o que muito pior.

Naquela época eu gostava de enquadrar as paisagens. Você foi a única que não pude pregar no quarto, porque sei que não suportaria vê-lo imóvel e aos berros cheirando a parede como que de castigo. Então eu prometi que nunca desenharia uma moldura em torno de ti. E que jamais te congelaria no papel porque gostava de vê-lo ventar e escorrer por tudo. Foi assim que te deixei partir, numa dessas tardes pastosas que a gente procura soprar do calendário.

Enquanto você caminhava tranqüilo beirando a calçada na contra-mão, te olhei pela última vez. Já nem sei mais se era você, porque através de cortinas e olhos neblinados tudo fica fora de foco. Sei que não pude esperar mais e finalmente disparei o obturador. Do outro lado da rua você ainda ensaiou três passos antes de cair. Então eu o tive, única e eternamente. No asfalto úmido, tua imagem congelada.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

horripilante de bom. meu orgulho!
bitocas

5:13 AM  
Anonymous Anônimo said...

Este comentário foi removido por um administrador do blog.

2:17 PM  

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