segunda-feira, abril 17, 2006

Espelhos

Para J.F.C.

Já me aconteceu outras vezes, o que me faz crer que não podemos ser mais que marionetes confeccionadas e manipuladas por alguém que zomba de nós com um sarcasmo perverso.
Como agora que levanto para buscar um gole d’água e, na displicência exata do momento em que olho a janela, noto o mesmíssimo movimento de um homem no edifício defronte ao meu. Um breve levantar de onde quer que estivéssemos e fitarmos um ao outro pela moldura de vidro, espécie de coreografia entre anônimos rigorosamente ensaiada.
Incrível perceber que moramos tão próximos, de modo que posso percorrer sem esforço toda a extensão do seu apartamento, desde o enorme sofá vermelho de couro até as samambaias que se derramam preguiçosamente no canto da sala. Reparando melhor, você também tem um gato velho enfiado debaixo da mesa. E agora você está tão fragilizado olhando desse jeito a rua suada de chuva que posso sentir teu bafo quente no vidro da janela, a solidão que se mistura com cheiro de café e pêlo de gato roçando tuas pernas.
Por alguns instantes quase posso sê-lo aí deste lado da rua. Quase posso ter essa cara azulada tingida de luz de tv. Ao longe, escuto o relógio anunciar que passa das onze horas no teu apartamento decorado com porta-retratos de rostos esquecidos. Seis, sete, ouço cada vez mais perto. Os ecos de sapato na madrugada vão ficando surdos, oito e eu lembro que amanhã devo molhar as samambaias. Nove e o gato espreguiçando-se entre minhas pernas. Sim, agora sei que posso sê-lo plenamente aqui deste lado, fitando-me assustada com a casualidade, dez, rindo de mim mesma, de pijamas, enquanto puxo a cortina com a mão esquerda, vendo a noite do onze, 12º andar.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Adoro te ler e sentir essa fineza do olhar. Sempre surpreendente!

6:31 AM  
Blogger Vizionario said...

Boa construção para uma temática surrada.

11:13 PM  
Anonymous Anônimo said...

Very pretty site! Keep working. thnx!
»

2:17 PM  

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