quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Hace un año que..


21/02/2005
As almas do deserto

Lucia, 49 anos, dona de casa, ia de Calama até Baquedano encontrar o irmao doente. Jorge, 60, minerador, voltava à Chuquicamata de manha cedinho para mais uma jornada de trabalho nas minas de cobre. Pedro e Claudio, gêmeos, queriam passar as férias em Antofagasta. Faltavam só 30 km para que Ana Amelia, 19, chegasse à Tal-Tal. Dora, 24 anos, levava a filha de 5 até o posto de saúde de La Serena. Juan Carlos vinha de Zapallar no seu caminhao cor de vinho reluzente. Clara, 16, fugia para Iquique com o namorado. Roberto esperava Federico em Arica para, juntos, cruzarem a fonteira. Nenhum deles se conheceu em vida. Agora, se encontram lado a lado em pequenos túmulos improvisados à beira da ruta Panamericana, no meio do deserto. A história mais triste é a de Amadeo Ribero, que há um ano vive dentro do iglu de tijolos que construiu junto ao pequeno caixao de seu filho, no km 298 da Panamericana. Quem viaja sentido norte pode vê-lo em sua morada solitária, no lado direito da estrada, a 60 km de Antofagasta. As flores deixadas por Amadeo ao lado do túmulo infantil murcham depressa devido ao sol forte do deserto. De noite a temperatura baixa muito e Amadeo quase nao pode dormir. Foi Oscar, o caminhoneiro que nos trouxe até Calama, quem me contou sua história. Perguntei a ele se alguma vez tinha parado para conversar com Amadeo Ribero e Oscar disse que nunca, apesar de passar por ali uma ou duas vezes por semana. "Mas um amigo meu uma vez lhe levou um sanduíche de peixe. Amadeu nao quis comer, disse que nao gosta de frutos-do-mar."

Publicado em www.tambemsechamavaestrada.theblog.com.br

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

insônia ao lado

Lúcia não pode dormir. E dessa vez não é culpa da gata Cleo nem das habituais e torturantes tarefas escolares. Enfiada no travesseiro com as iniciais que sua avó bordou, Lúcia espera o sono vir passear e lhe dar carona. Mas vai ficando tarde e suas pálpebras não querem viajar esta noite.

Na pequena gaiola embrulhada em papel de parede que Lúcia chama de quarto, ou canto, ou alguma palavra inventada por meninas da sua idade, a escuridão permite perceber melhor os sons da rua. Escuta um carro virando a esquina muito lentamente e pessoas – mais de duas, ela tem certeza – discutindo bobagens embriagadas.

Apesar do breu absoluto, Lúcia sabe de cor todas as coisas ali escondidas ou espalhadas. A xícara meio quebrada com dois dedos de café vencido. Um calendário do ano passado com imagens que não envelhecem nunca. Um pé só – Lúcia pensa que o esquerdo – do seu sapato preferido que refugiou-se debaixo da cama, a maior de todas as gavetas.

Inexplicavelmente, a existência de certas coisas começa a perturbar Lúcia, como uma caixa encapada com papel lilás que há tempos mora no fundo do armário. Incomoda-a que tenha estado tanto tempo fechada, repleta de cartas mudas como peixes adormecidos. Mas o pior está logo ali, ao alcance dos dedos. Sobre o criado-mudo, um pedaço de papel arrancado do caderno de matemática com um número de telefone riscado a lápis. Quase marca d’água.

Lúcia não pode dormir e não é sua culpa. Ela sabe que não irá dormir enquanto seu número de telefone estiver anotado na outra metade do papel quadriculado, com as beiradas também rasgadas, e que possivelmente se encontra debaixo de um livro de 500 páginas e 155 capítulos em cima do criado-mudo do quarto de Daniel, que não consegue pregar os olhos embora já passe das quatro horas.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

moedas de açúcar

fotografia: mariana sanchez

Mis pasos en esta calle resuenan
en outra calle
donde oigo mis pasos pasar
en esta calle
donde sólo es real la niebla.

[Octavio Paz]

domingo, fevereiro 12, 2006

capítulo vinte


Maga: “Esa noche vos corrías peligro. Se veía, era como una sirena a lo lejos... no se puede explicar.”

Oliveira: “Mis peligros son sólo metafísicos”.

Maga: “También hay ríos metafísicos, Horacio. Vos te vas a tirar a uno de esos ríos.”

Laura n'água

Primeiro foi um homenzinho loiro que corria e tropeçava nos trilhos de uma velha estação desativada, arrastando pelo braço uma guria de cabelo curto bastante assustada que gritava: - “Otávio ficou pra trás com a sombrinha amarela!” Depois vieram umas ameixas douradas maduras, que ao cair do galho seco transformavam-se em suculentos pássaros noturnos.

Enquanto Laura deixava cair a água do chuveiro nas costas, pedaços de sonho escorriam pelo ralo. Sonhos ainda mornos, fiapos de memória molhada que Laura deixava escapar em trêmulas e brilhantes gotas.

E lá se ia um gato ralo abaixo, bolinha felpuda e miante com olhos vazios. Para em seguida escoar aquele rapaz alto e magro empenhadíssimo na tarefa de consultar os ponteiros do relógio como quem examina uma jóia, a textura de uma pétala ou os lábios de sua mulher.
No fundo da paisagem, uma praia em dois tons. Na primeira das metades, uma fina e clara areia, ondas tranqüilas lambendo o calcanhar das crianças. Atrás, o céu doente de febre, tão escuro quanto as pupilas de Rita quando chora - que ficam diferentes de todas, ainda mais pupilas.

É de manhã e Laura enxágua com zelo seus sonhos, cuidando para que não se quebrem ao cair dos cabelos, protegendo-os do esquecimento antes que os pobres se estilhacem contra o chão do box do chuveiro.

eternamente Peter Schlemil

I’m a Frenchman in Germany
And a German in France,
A catholic among the Protestants
And a Protestant among the Catholics,
I’m a stranger
Whether I go.
I want to embrace so much everything
And everything slips away from me”.

(Adalbert Von Chamisso)
Quando as minhas mãos pálidas
deixarem cair a última caneta
em um quarto barato
eles vão me achar lá
e nunca saberão
meu nome
minha intenção
nem o valor
da minha fuga.

(Charles Bukowski)

f.22

Foi numa época em que eu costumava enquadrar paisagens. Eu fotografava pra um jornal pequeno e sem importância mas gostava que todas as ruas e nuvens e gentes e cães vadios morassem por alguns instantes entre a cortina e o espelho da minha objetiva fotográfica. Não havia prazer maior que me sentir dona das coisas.

Menos de você, que sempre foi imenso demais pra caber no meu retângulo de 24 por 36mm. Fotografar você era quase como apalpar o vento, cheirar uma música, morder essa chuva fina que forma agora um véu prateado na minha janela. E também não haveria porta-retrato do qual você não escapasse. Mesmo que houvesse, você me faria caretas horríveis toda vez que eu te olhasse ali pausado, preso por ganchinhos ou ímãs coloridos, talvez esmagado entre duas placas de vidro, o que muito pior.

Naquela época eu gostava de enquadrar as paisagens. Você foi a única que não pude pregar no quarto, porque sei que não suportaria vê-lo imóvel e aos berros cheirando a parede como que de castigo. Então eu prometi que nunca desenharia uma moldura em torno de ti. E que jamais te congelaria no papel porque gostava de vê-lo ventar e escorrer por tudo. Foi assim que te deixei partir, numa dessas tardes pastosas que a gente procura soprar do calendário.

Enquanto você caminhava tranqüilo beirando a calçada na contra-mão, te olhei pela última vez. Já nem sei mais se era você, porque através de cortinas e olhos neblinados tudo fica fora de foco. Sei que não pude esperar mais e finalmente disparei o obturador. Do outro lado da rua você ainda ensaiou três passos antes de cair. Então eu o tive, única e eternamente. No asfalto úmido, tua imagem congelada.

É proibido pisar na grama


Helena pisa no tapete macio da sala. Na outra parte da casa Horácio escuta o ruído sedoso do virar de páginas de um livro.
Mais uma daquelas leituras emergenciais na madrugada. Fora, a noite cai em gotas e o que se ouve é só o som de pneus molhados amaciando a avenida.
A agulha finalmente se separa do disco depois de dar sua última volta, chia chiando. É três da manhã e Helena desliza de meias até a cozinha, a luz invernal da geladeira iluminando a garrafa de leite que ela traz debaixo do braço para a cama onde Horácio dorme amarelamente sob a luz do abajur.

Na manhã seguinte um vento oco irá arrrrrrastar as folhas de plátano secas que se grudarão nas melissas de Helena. Bem perto da rua voluntários da pátria alguém deverá recolher as roupas úmidas que pernoitaram no varal do oitavo andar.

poeminha de estréia

El día me recuerda que no soy árbol y no tengo raíces de pájaro.
Vivo vagamente
y nadie me ve entrar.

(Juan Gelman)