segunda-feira, maio 29, 2006

dama preta


- Anda.
- Desculpa, não prestei atenção.
- Mexi o cavalo. Você tá em Xeque.
- Porra, de novo. Espera. Hummm. Tá. Foi.
- Ha ha.
- Que que é?
- Nada. Tua vez.
- Me diga, você ficou chateada com aquela história, né? Era uma brincadeira. Um jogo, poxa.
- Do que você tá falando?
- Sem essa. Eu sei que você ficou puta.
- Mas meu deus, você é um babaca mesmo. Acha que não entendi aquilo? Acha que não saquei logo de cara? Você queria era me machucar, desde a hora que chegamos. Você é bom nisso.
- Não tou acreditando.
- Anda. Tua vez. Ou não tá mais a fim de jogar? Cara, você sempre faz isso quando tá perdendo...
- Há há há há. Tou perdendo? Taí. Cuida melhor desse bispo da próxima vez.
- E você dessa tua torre. Idiota.
- Puta que pariu. Não tinha visto. Peraí, você me desconcentrou com esse papo todo. Não sei se tu sabe mas esse jogo exige silêncio, si-lên-cio.
- Ahh, e quem foi mesmo que começou essa história besta? Anda, já jogou?
- Não, apressadinha. Cala essa boca que daí eu consigo pensar.
- Pensar? Alguma vez você já tentou isso? Não creio.
- Pois creia. Mas isso foi antes de você aparecer. Ah, bons tempos aqueles. Xeque.
- Ora ora, finalmente acordou pro jogo. Assim que eu gosto, já tava me dando sono.
- Vai dormir, então.
- Nem pensar. Tá querendo fugir, é?
- Não, essa tática é tua, esqueceu?
- Bom, aquilo foi outra coisa. E tem mais, você sabe que não gostei nem um pouco do jeito que aquela vadiazinha me tratou.
- Não pode.
- O que?
- Aí não pode. Presta atenção. Minha dama.
- Filho da puta.
- Hi hi.
- Mas aqui posso.
- Humm. Pode.
- Do que eu falava mesmo? A, da piranha. Bom, nem vale a pena.
- Claro que não. Até porque piranha ela não é mesmo. E não fale de quem você não conhece.
- Vai defender a cretina, vai? Viu como você é?
- Sou o que?
- Ah, esquece isso vai? Cara, eu tava tão a fim de jogar, você sempre fode com tudo.
- Eu? Eu?
- Não, eu..
- Jogou? Ou vai tagarelar a noite inteira?
- Pshiiiiiiiiiu. Minha vez. Xeque. E eu acho que é Mate.
- É não. Eu ainda posso sacrificar a dama.

Publicado no Aquele#9

segunda-feira, maio 22, 2006

Janelas


pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
(leminski)

Luis viveu em muitos lugares.
Foi correspondente internacional de jornais importantes, acompanhou guerras e conflitos de toda ordem em terras distantes, alcançou notoriedade. Andou por cidades mortas, paisagens esquecidas, ruínas quase mais vivas que o cheiro do vento e da terra úmida. Dormiu em camas de mulheres cujo nome nunca soube. Teve filhos de muitas nacionalidades, em anos diferentes, de diferentes mães. Matou e morreu tantas vezes que já não sabe contar. Amou, doeu, fugiu e voltou infinitamente, mesmo quando não devia. Conheceu homens e terras castigados, vidas roubadas jamais devolvidas. Conheceu a morte em suas diversas formas. Viu presidentes serem depostos, viu governantes serem substituídos, viu o Papa ser substituído. Esteve longe, sonhou sua casa, sonhou a mulher que nunca teve, sentiu frio e fome e medo. Cansou de esperar. Cansou de desesperar. Mandou mensagens incompreensíveis dentro de garrafas pet lançadas do Pacífico ao Atlântico. Mudou de profissão, mudou de nome, trocou de chapéu tantas vezes quanto mudou de idéias – "não é bom levar por muito tempo as mesmas coisas sobre a cabeça", dizia. Chorou em público dentro do metrô. Viu nuvens formarem desenhos bonitos. Escapou das fumaças das bombas de gás e teve os olhos ardendo em febre. Se despediu de amigos em portos e estações rodoviárias e teve os olhos ardendo em lágrimas. Viu gente morta na estrada, animais estilhaçados no asfalto, corações estilhaçados em tantos peitos em tantas pátrias. Dormiu sua última noite longe de casa na cabine de um caminhåo sentindo o cheiro azedo da noite mesclado a saudade e pneu queimado.

Luis foi tudo e não foi nada. Não fez a mínima diferença. E hoje, no auge da idade, quando cruza a rua nove na esquina da casa de pedras que já foi jardim de infância, quando passa com sua bicicleta azul possante no bairro em que viveu quando criança, Luis pensa que durante todo esse tempo nunca transpôs os limites da Campina do Siqueira. E que a rua nove, cenário de guerras eternas e sublimes conflitos, poderia ter sido o mundo todo.
O mundo visto de uma única janela.

domingo, maio 14, 2006

praça: fragmento # 4


Fotografia: mariana sanchez
Palavras:
gil brandão

Eu já não procuro por mais ninguém,
sou o dono do meu tempo.
Meus passos são todos certos
agora que não vou sozinho.
Eu te sinto junto a mim, e sei que estou contigo.
É assim que são as coisas, como as ondas do mar
e a praia.

Por isto não falemos de alegrias e sacrifícios,
essas coisas que não sabemos separar.
Há tristeza em nossos olhos mas está tudo bem;
ainda iremos longe.

quarta-feira, maio 03, 2006

Irremediavelmente maio


Década de oitenta, Curitiba, é início de maio e uma porção de crianças metidas em suéteres de lã tricotados pela avó se amontoam no salão de festas. Outras mais vão chegando, a campainha soa em curtos espaços de tempo. Meninas com gorros coloridos, algumas muito pequenas, piás arteiros descendo as escadas em correria. A maioria traz presentes embrulhados em papéis de seda. Crianças não se importam em desejar feliz aniversário, a felicidade é algo óbvio demais. No toca-discos, os trapalhões cantam que na vida é tão bom ter amigos do peito, amigos de fé igual a eu e você. As crianças brincam e pulam com as mãos engorduradas de risólis de carne, alguém vem ralhar comigo porque sujei a toalha de aniversário. Meu tio chega e quer um abraço, ele me espeta o rosto com sua barba rala e eu tento fugir, esbaforida, pra perto das outras crianças. Algumas tias com perfume muito forte conversam num canto, eu lembro do cheiro da jaqueta de couro do meu pai, rindo alto com seus amigos da firma. Sempre tive medo de homens com bigodes. Alguém apaga a luz, acho que é minha mãe, e em seguida começo a ouvir o coro desafinado do parabéns pra você. Todo mundo se amontoa sobre mim, eu fico pequenininha, em pé numa cadeira bamba. Nesse momento chega Bruno, bastante atrasado pra festa. Vejo-o parado na porta do salão com um embrulho amarelo nas mãos e gel nos cabelos. Me sobe um rubor, queimando as bochechas, mas no escuro e à luz das velas do bolo ninguém vê a minha vergonha. Nem escuto mais o parabéns, saio em disparada pelo quintal da casa. Lá fora está geando e o vento sopra violentamente. Sinto só o meu rosto queimar, vermelho, ardido, e escondo-o entre as luvas de lã que minha vó havia tricotado naquele inverno.