quinta-feira, junho 22, 2006

Heterônimos

"E vou escrever esta história para provar que sou sublime".
(Álvaro de Campos)

Já faz tempo que Juliana inventou o jogo: bastava deslizar o dedo indicador pela folha de seda da lista telefônica, escolher um número ao acaso, discá-lo ofegante, esperar o mecânico alô para em seguida declamar poemas de Pessoa. 32533712, Souza, Pedro. 22436529, Almeida, Bernardete. 33688375, Ramos, Julio.

- "Alô?"
- "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
- Tu-tu-tu…

Juliana não desistia de jogar, divertia-se inventando regras, convocando desconhecidos para a brincadeira. Às vezes circulava com caneta vermelha um número telefônico, rasgava a folha da lista, dobrava a seda feito origami e atirava-a do seu décimo andar sobre a praça dos pombos. Quem encontrava o papel, lia as instruções: "ligue para esta pessoa, declame um poema, desligue."

- "Alô"?
- "Janelas do meu quarto, do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?)
- Quem tá falando?
- É Juliana. Ou Pessoa. Quer dizer, um heterônimo. Como você.
- Tu-tu-tu..

Foi assim até conhecer Fernando, apenas um nome a mais constante na página 825 da lista telefônica.

- "Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!"
- "E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!"
Juliana calou subitamente, mas a voz do outro lado continuava:
- "Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta…"
Ela já não pôde mais silenciar, segurou o telefone firme entre as duas mãos e gritou com os pulmões inteiros:
- "Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!"

Suas vozes se encontraram inúmeras vezes, em celulares, bips, cabines públicas; no trabalho, em corredores universitários, tabacarias, no meio da rua. Acreditavam ser heterônimos um do outro, e por isso não precisavam conhecer-se pessoalmente. Eram a mesma pessoa. E Juliana jamais soube que Fernando trabalha justamente na editora de listas telefônicas.

(Baseado em roteiro de Fábio Francener Pinheiro)

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

adoro esses seus escritos tão delicados, marie mari cotte sanchez. e sinto uma saudade longínqua da senhorita. um beijo. e mais um abraço compriiiiido

8:25 AM  
Anonymous Anônimo said...

esse roteiro já foi filmado? quero muito ver esses personagens ganhando vida.. seria lindo, hein?

8:26 AM  
Anonymous Anônimo said...

Los telefonos son rivales y tambien complices. Confiar que de ellos algo podemos obtener, son solo palabras. ( ke huevada! )

5:06 AM  
Anonymous Anônimo said...

Gostei daqui. Você gosta de Antonio Machado?

9:40 AM  
Blogger quê? said...

Ótimo!

10:51 AM  

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