quarta-feira, setembro 27, 2006


Eu recebi um envelope,
Um envelope pardo sem carta dentro.
O texto, redigido em caneta bic, explicava o começo de tudo
(coerente, se envelopes são introduções).

Foi a anti-carta mais bonita que você me escreveu.
E eu guardei na gaveta do quarto, pois queria guardar no silêncio
(coerente, se criados-mudos não falam).

No envelope pardo, não tinha carta.
Apenas duas pequenas flores coloridas.
- “A esperança!”, você disse, em caneta bic.
(coerente, se envelopes são introduções e Esperança é a marca da única roupa que cabe em todos os começos).

quinta-feira, setembro 21, 2006

Fe-li-ci-da-de # 2


Chuva torrencial; amigas rindo em coro; girassóis crescendo; alfajores muito macios; bjork dançando no escuro; demoradas viagens de trem; teatro de sombras com abajur; ver você no fim do dia; meninas trocando papel de carta; um disco inteiro de Quincy Jones; rastros de avião a jato; uma taça de vinho tinto; crianças de cinco anos; sogras queridas; um conto inédito de Julio Cortazar; ver você no início do dia; vinil raro; giz de cera e massinha; os cinco minutos que antecedem o recreio; os cinco minutos que antecedem a sexta-feira; cinema a um real; reflexo em gotas; flores de soprar; a primeira estrela da noite; cartões-postais para si mesmo; piquenique e bossa nova; formigas fofocando na grama; terminar a tarefa e ir brincar; acordar de pesadelo; nunca ter pesadelo; trilha sonora de desenho animado; ver você a qualquer hora; cheiro de café fresquinho; leite quente sem sotaque; cinema segunda à tarde; um conto de Mia Couto; lágrimas de cócegas; footmassage; caleidoscópio girando; Tim Maia anunciando que é primavera.

(fotografia: Mari Sanchez)

segunda-feira, setembro 18, 2006

Uma carta, uma brasa através (ou ainda, um desabafo pré-nupcial)


Querido Pedro,

Che! Mi gran pelotudo! Cabrón querido! Mi hermanito muy precioso!
Você devia ter estado lá, porque a coisa foi mesmo imperdível. Tu, cabrón, que tanto se interessa pelas experiências antropológicas e que viveu boa parte delas do meu lado, haciendo dedo en la ruta, tomando pórre de chicha boliviana, fazendo piquete contra o presidente do Ecuador ou ainda escalando até machu picchu antes do sol nascer. Tu, boludo, que caminhava comigo por toda Buenos Aires e depois me apontava as paisagens desésticas da janela de um caminhão chileno. Que depois, feito vingança, partiu pro México quando eu voltei pra casa e me deixou recordações fotográficas salgadas de lágrima.

Você devia ter estado lá, amigo.
Disculpame, che. Perdoname por não ter te convidado. Me disseram que o programa era restrito, que só as mais enlouquecidas fêmeas poderiam entrar. Pois lá estava eu, fechada na sala, no meio de trinta mulheres histéricas que me dopavam com cerveja quente e riam da minha fragilidade de noiva. Isso. De noiva. Então, de olhos vendados, eu tentava adivinhar presentes encaixotados, distinguir uma escumadeira de uma colher de pau, arriscar entre um jogo de tap-wear e panelas antiaderentes pagando os mais patéticos castigos quando o palpite dava errado.

Perdoname, che. Eu sei que é injusto não compartilhar esses momentos contigo, e também sei que não te agrada saber que nossas mochilagens estarão suspensas por ora. A viagem deve sempre continuar dentro da gente, mesmo que de maneiras distintas. (A liberdade tem muitas caras, você sabe, e eu encontrei uma muito bonita.)

Minha amiga Carla foi quem lançou o apelo: “párem de crescer, parem de casar”. Eu contestei o pedido e disse que eu quero, e que casar e navegar é preciso.

Pero sin perder la ternura jamás.

Un abrazo caluroso,
tu hermana de hoy y siempre

terça-feira, setembro 12, 2006

Trompe l’ oeil


(fotografia: Renato Larini)

Ele sempre soube que teria escrito o livro de sua vida aos oito, nove anos. O romance definitivo. A aventura mais pra dentro de si próprio. Já nascera aos setenta, costumavam dizer os primos. Diziam também que seria um grande escritor, mas que antes deveria sofrer pra caralho, se atirar de cabeça na lama, passar meia dúzia de noites sem dormir e amar, amar fundo até o esquecimento.

O ruído surdo da correia da bicicleta pedalando no ar. A queda.
Sua infância não teve pipas nem cataventos. Sua música era o som das páginas virando no silêncio oco do quarto.
- “Os axolotes não têm pálpebras!”, admirava-se.
- “Em inglês, Eu e Olho se pronuncia igual”, descobria melancólico.

Aos doze anos, decidiu que não existiam as zonas intermediárias, os deltas e gamas. Ou se era, ou se não. Preferiu apenas não ser, e arquivar instantes girando o filme fotográfico até o final. Sua maneira de não-ser, tão sua, tão lucidamente confusa, nunca foi bem interpretada pelos outros. Os primos lhe tinham pena. As mulheres lhe tinham medo. Ele mesmo, não tinha muita coisa.

Mas é preciso viver absurdamente para acabar com o absurdo.
E Rodrigo aprendeu a ser mutante, reinventar-se caleidoscopicamente. Uma pintura DaVinciana que, para sempre, engana os olhos alheios. Só então Rodrigo tornou-se abstrato.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Rua Berggasse, no. 19


No sonho de ontem, Ana entrava em uma sala ampla, móveis finos, teto alto, pouca iluminação.
A analista está sentada numa poltrona com ares de seriedade e dedos entrecruzados. Ana esparrama-se no sofá e começa a tagarelar trivialidades. A cutícula que incomoda, e você viu a novela das oito, aprendi a fazer um bolo de chocolate ma-ra-vi-lho-so!
A analista encara-a severamente e exige:
- Isso não me interessa. Eu quero os seus problemas metafísicos.
- Por nada nesse mundo eu falo de mim.
Então Ana levanta-se, muito ofendida, assina um cheque de 957 reais, despede-se friamente e antes de sair ainda tem tempo de tirar-lhe um pedaço de bolo de chocolate do tap-wear.
- Prova e me diz.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Setembro na chuva


The leaves of brown came tumbling down
Remember in September
in the rain
The Sun went out just like a dying amber
That September in the rain

To every word of love
I heard you whisper
The raindrops seemed to play
our sweet refrain
Though spring is here to me
it's still September
That September in the rain

(Música de Harry Warren e Al Dubin)
(Imagem de Renato Larini)