terça-feira, agosto 22, 2006

a lua é flicts

Sabe aqueles dias em que o chão fica mole, a existência pesa nos ombros, as gavetas têm cheiro de mofo e nada, absolutamente nada, nem mesmo um chicabom se derretendo pelos dedinhos finos de Amanda consegue trazer algum tipo de conforto?

Pois foi num dia assim que Lucia decidiu partir pra sempre.

Ressentida, pegou a lancheira rosa e caminhou sem rumo, equilibrando-se graciosa nos trilhos do trem. Ainda na periferia da cidade, Lucia lembrou o enterro da avó. O céu cor-de-chumbo se mesclando ao cheiro de margaridas e vela derretida, o som das vozes resmungando versos bíblicos. Com os olhos fixos nas mãos pálidas da avó, enroladas no rosário carmim, Lúcia não derramou um só fio de lágrima. No fundo, esperava que nas próximas noites a avó ainda se debrussasse sobre seus cabelos de caracol dourado para contar fábulas inventadas.

Três anos depois, partiu.
As nuvens no céu cor-de-chumbo não formavam nenhum desenho. Mas ninguém sabe a verdade (a não ser os astronautas). Numa casinha à beira da estrada do Acaba Mundo, Lucia e sua avó de cabelos de algodão tomam o chá da tarde junto às formigas liláses, e esperam a lua despontar baixinho, silenciosa e derradeira.

sexta-feira, agosto 18, 2006

if the rain comes


Eu só tenho meia quadra pra chorar. Dez, doze míseros passos. Já na esquina você me espera, a bicicleta estacionada, e eu não quero ter que explicar as lágrimas de rímel, desculpar o erro, justificar. Há sempre essa necessidade insondável de legitimar os gestos, como se as importâncias viessem dos motivos, invariavelmente. Nem sempre se tem motivos, muito menos pra chorar, e eu sei que Isis também pensa assim. Por isso eu gosto tanto de Isis, porque ela sabe chorar tão bonito e tão livre das razões.

A primeira coisa que você notou em mim foi o trajeto da lágrima preta na face. Uma lagriminha mínima, sem importância, como pode ter percebido? Acabei mentindo que Isis morreu, só pra te dar um motivo, e você me colocou junto ao peito e alisou meu cabelo com tanta dor e carinho que te senti pena justamente quando o choro começou. Tuas lágrimas eram de verdade, as minhas eram puro exercício. Sim, porque é preciso aprimorar o choro, manter a disciplina diária do treino lacrimal.

Não desmenti a morte de Isis e você foi embora arrasado, empurrando a bicicleta pela rua de paralelepípedo. Depois de 40 dias de estiagem na cidade, o céu começava o chover.

terça-feira, agosto 15, 2006

o encontro


"Dois pontos que se atraem não têm por que seguir forçosamente uma linha reta. Sem dúvida, é o caminho mais curto. Há, no entanto, os que preferem o infinito.

As pessoas caem umas nos braços das outras sem delinear a aventura. Quando muito, avançam num ziguezague. Mas, uma vez no rumo certo, corrigem o desvio e se juntam. Amor tão repentino representa um choque, e aqueles que assim se defrontarem são devolvidos ao ponto de partida como por efeito de um disparo. Projetados violentamente, sua trajetória de retorno os incrusta novamente, canhão adentro, num cartucho sem pólvora.

Vez por outra, um par se afasta desta regra invariável. Seu propósito é francamente linear, não carece de retidão prévia. Misteriosamente, escolhem o labirinto. Não podem viver separados. Esta é a única certeza que os possui, e terminam perdendo-a ao se procurarem. Quando um deles erra e marca o encontro, o outro finge não perceber e passa sem cumprimentar".

(de Juan Jose Arreola)
(fotografia de Cartier Bresson)

quinta-feira, agosto 10, 2006

da série "simultânea ausência"


(fotografia: mariana sanchez)

quarta-feira, agosto 02, 2006

pano de prato

Hoje de manhã eu comprei um pano de prato. Foi na venda da esquina e custou só um real. Sobre o desenho bordado de um radiante girassol, a frase no tecido limpinho dizia:
"tenha um dia feliz".

Logo mais o sujaremos com restos de gordura, as mãos úmidas pegajosas de cozinha. E secaremos louças compartilhadas com amigos em almoços dominicais, protegeremos os dedos das travessas fumegantes, recolheremos as migalhas miúdas do café, espantaremos insetos com ligeiros chicoteios no ar, e em seguida limparemos a pia respingada de espuma,
o suor da testa depois da faxina.

Um dia, quando já bem sujo, puído e molhado, o aposentaremos de suas funções primordiais na cozinha e o mandaremos para o exílio. Na lavanderia, lhe restará a companhia de baldes, esfregões e panos de chão. Viverá na marginalidade entre os desclassificados, destituído de seu papel social. Um caquético, um inválido. Um pano de prato convertido em piso de chão.

Também nós um dia estaremos velhos, úmidos e gastos; também perderemos o bordado, a cor, a função. Mas, antes de sermos descartados, com sorte ainda serviremos para secar alguma lágrima de cebola que porventura escapar dos olhos de uma mulher. Lágrimas de cebola são sempre uma desculpa: esfarrapada como um trapo antigo comprado na venda da esquina por apenas um real.