sábado, julho 29, 2006

caos portátil

"agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal do peso do corpo que sobe. Aqui troco de mãos e começo a ordenar o caos".
(Ana Cristina Cesar)

quinta-feira, julho 27, 2006

da série "simultânea ausência"


(fotografia: mariana sanchez)

quarta-feira, julho 19, 2006

às oito



Uma urgência em dizer, dizer não se sabe o quê,
como se o gesto fosse a palavra
(diálogo eloqüente de surdos-mudos: a palavra tem o peso do gesto).

Uma urgência em sentir o calor,
como se amanhecesse amarelo.
Essa urgência amarela de dizer as coisas,
qualquer coisa,
espumando a pasta de dente cremosa na pia.

Há todo um sol querendo entrar
pela janela do banheiro.
Uma urgência de calor, o remorso de azulejos frios,
o mofo das paredes úmidas contornando o inverno.
Uma urgência em dizer,
GRITAR,
cuspir o longo bochecho na pia
misturado a pedaços de sonho e hálito e essas saudades miúdas oito horas da manhã.

Imagem: Noturno, de Fabio Dudas.

sábado, julho 15, 2006

Cão, walkman, bicicleta


Agora eu entendo, embora tarde. Nenhuma infância pode ser completa sem um cão, um walkman e uma bicicleta. Existem alternativas funcionais como ramsters, tartarugas, radinhos de pilha, pogobol. Mas nada, ninguém, brincadeira alguma substitui tamanho contentamento: um cão que sorri pela cauda, a música ladeira abaixo na bicicleta sem freios.

Então, aos vinte e cinco anos Denise decidiu comprar uma bicicleta, adotar um cão, adquirir um walkman. Mas a nostalgia romântica da infância de Denise se viu frustrada: o walkman não precisava de pilhas nem fitas k7, a música no mp3 player tem a duração infinita de 5 gibabaites. A bicicleta de 21 marchas tampouco tinha graça, não desafiava seus joelhos na subida.
Por fim o cão, um poodle miniatura tingido de rosa, mais parecia pelúcia para enfeitar quarto de menina.

Denise não é mais menina, e num ataque de súbita raiva adulta se desfez de tudo, zangada por não conseguir mais ser criança. Invejosa, observa de longe a sobrinha Julia de 6 anos correr pelo pátio com seu poodle pink.

- "Como ela consegue?", resmunga Denise, pouco antes de entender que o cão, o walkman e a bicicleta agora também viraram adultos.

terça-feira, julho 11, 2006

O amor é fodido #2


"Quanto mais vou sabendo de ti, mais gostaria que
ainda estivesses viva. Só dois ou três minutos:
o suficiente para te matar"
(Miguel Esteves Cardoso)


Como um gato, cheguei silenciosa deslizando pelo piso da enorme sala vazia. Arisca, já fui lambendo tuas costas mornas com a ponta da língua. Comecei mordiscando devagar e escalei até a nuca, onde encontrei uns poucos pêlos eriçados cheios de vergonha.
Ri da fala preguiçosa resmungona, de você sorrindo tímido e fechando os olhos docemente, das pequenas rugas de riso que se formavam no canto da cara.
O cheiro da tinta branca que aos poucos cobria as paredes do apartamento se misturava com teu suor e a ventania do fim de tarde. Então eu me atirava contra teu peito, suja de pó da mudança, tropeçando em jornais antigos, a camiseta respingada de tinta. E já não havia mais camiseta nem tinta nem cintos zíperes botões e era só o suor e o som seco das paredes, o apartamento vazio fazendo eco, imitando nossas ruidosas bocas que se buscavam avidamente, mordendo-se, e não demorava para minhas costas se tingirem de branco, esgueirada na parede enquanto você escalava meu corpo lancinante, meus dedos voluptuosos apertando tuas costas claras, cravando as unhas profundamente, arranhando a palidez da tua pele lisa, pedindo que mais e as paredes repetindo em sua branca e insistente súplica, que era também a sua, uma súplica ansiosa e já quase cega de dor, enquanto manchava as brancas paredes formando paisagens abstratas com o vermelho que agora escorria quente das tuas costas.

sexta-feira, julho 07, 2006

Exatamente, Mr. Miller

"Escrever, eu meditava, deve ser um ato destituído de
vontade. A palavra, como a profunda corrente oceânica,
tem que flutuar na superfície de seu próprio impulso.
Uma criança não tem nenhuma necessidade de escrever, é
inocente. Um homem escreve para destilar o veneno que
acumulou devido à sua maneira falsa de vida.
Está tentando recapturar sua inocência e no entanto tudo o
que consegue fazer (escrevendo) é inocular no mundo o
vírus de sua desilusão. Homem nenhum colocaria uma
palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo
em que acredita." (Henry Miller)

quarta-feira, julho 05, 2006

da série "simultânea ausência"


(fotografia de Mariana Sanchez)

segunda-feira, julho 03, 2006

porque o tempo.

Alice saiu na foto de família. Surgiram de repente juntando os filhos no quadro fotográfico e Alice saiu sem querer, bem no cantinho, lendo um livro de Manoel de Barros. Alice estava distraída sentada num dos bancos quando eles chegaram barulhentamente na praça. Agora Alice não está mais lá.
Alice agora vive no porta-retrato de uma sala de jantar qualquer da vila Fanny, juntando pó ao lado de vasinhos de porcelana pintados pela tia, decorando o balcão de mogno comprado nas casas Bahia, fazendo par com outros retratos de gente desconhecida. E com eles irá envelhecer no interminável inverno das fotografias amareladas.
Ali mesmo, na sala de jantar da família.
Ali mesmo, na fotografia.
Alice e o Manoel.

da série “simultânea ausência"


(fotografia de Mariana Sanchez)