segunda-feira, abril 24, 2006

Duração média, 3 minutos


Na penumbra avermelhada do anfiteatro El Silencio, Fernanda ouvia o pianista de cabelos ruivos dedilhar uma música minimalista. Simultaneamente, uma lágrima minimalista repetia-se no canto esquerdo de seus olhos, mas isso Hugo ainda não havia notado. As notas caíam das mãos macias do pianista feito gotas de chuva salgada, um choro pequenininho ensopando o tablado do anfiteatro. Fernanda quis juntá-las e cortou o dedo numa das notas pontiagudas, mais parecia um dó menor. Hugo acariciou seu dedo em silêncio e, antes que a música minimalista chegasse ao fim, uma cicatriz mínima se formou no dedo mínimo de Fernanda. Na penumbra avermelhada do anfiteatro Hugo pôde perceber que Fernanda era toda cicatrizes, e que algumas feridas minimalistas se repetiriam ainda por muitos anos.

segunda-feira, abril 17, 2006

Espelhos

Para J.F.C.

Já me aconteceu outras vezes, o que me faz crer que não podemos ser mais que marionetes confeccionadas e manipuladas por alguém que zomba de nós com um sarcasmo perverso.
Como agora que levanto para buscar um gole d’água e, na displicência exata do momento em que olho a janela, noto o mesmíssimo movimento de um homem no edifício defronte ao meu. Um breve levantar de onde quer que estivéssemos e fitarmos um ao outro pela moldura de vidro, espécie de coreografia entre anônimos rigorosamente ensaiada.
Incrível perceber que moramos tão próximos, de modo que posso percorrer sem esforço toda a extensão do seu apartamento, desde o enorme sofá vermelho de couro até as samambaias que se derramam preguiçosamente no canto da sala. Reparando melhor, você também tem um gato velho enfiado debaixo da mesa. E agora você está tão fragilizado olhando desse jeito a rua suada de chuva que posso sentir teu bafo quente no vidro da janela, a solidão que se mistura com cheiro de café e pêlo de gato roçando tuas pernas.
Por alguns instantes quase posso sê-lo aí deste lado da rua. Quase posso ter essa cara azulada tingida de luz de tv. Ao longe, escuto o relógio anunciar que passa das onze horas no teu apartamento decorado com porta-retratos de rostos esquecidos. Seis, sete, ouço cada vez mais perto. Os ecos de sapato na madrugada vão ficando surdos, oito e eu lembro que amanhã devo molhar as samambaias. Nove e o gato espreguiçando-se entre minhas pernas. Sim, agora sei que posso sê-lo plenamente aqui deste lado, fitando-me assustada com a casualidade, dez, rindo de mim mesma, de pijamas, enquanto puxo a cortina com a mão esquerda, vendo a noite do onze, 12º andar.

quarta-feira, abril 12, 2006

praça: fragmento # 3


Fotografia: mariana sanchez
Palavras: gil brandão

Noite passada eu bebi demais, acho que queria
beber o mundo inteiro.
Sentado no meio-fio com um monte de gente estranha,
repetindo velhas histórias.

Cheio de argumentos e prosódias,
me sentindo um palerma.

Olhei tudo aquilo em volta
e tomei mais um gole.
Que maneira estúpida de passar a noite.
Amanheceu e todos levantaram-se com seus sorrisos trágicos,
seus cumprimentos de mãos moles.
Meu banco me esperava e assim começou mais um dia.

quinta-feira, abril 06, 2006

O céu de Marília


Marília falava sofregamente feito tempestade.
Falava e chorava, em desespero,
a cara fechada cor-de-chumbo.
Do pranto ao riso foi um salto, e então
a gargalhada.
Eu, que encarava Marília, não lhe dizia nada.
Apenas esperava o arco íris se formar, comprido,
bem no meio da cara.

segunda-feira, abril 03, 2006

La muerte del Papa

Los periódicos anunciaban, No pasará de mañana. Pero la cosa se ha demorado una semana más. Por fin se murió el Papa, y Pamela lo supo en castellano por un periódico de extrema-derecha comprado en un quiosco del centro de Lima.
“No, no fue así”, se recuerda.
Los periódicos, que anticipaban la muerte del Pontífice con tanta prisa, solamente pudieron noticiarla en la mañana siguiente. El Papa murió en la tarde, y eso se supo por la tele.
Pero Pamela solo se ha dado cuenta al cruzar la Plaza de Armas iluminada por la luz temblorosa de unas cuantas velas dejadas por vigilantes religiosos en las escaleras de la Iglesia Santo Domingo.
En aquella noche, histórica noche, Pamela andaba del brazo con Julio conversando tonterías disfrutando del viento fresco de la madrugada limeña. Él, a su vez, reía con gusto y entre besos le decía: “Estamos juntos y el día de hoy será recordado para siempre en todo el mundo. El Papa murió, pero estamos vivos. Estamos juntos. Y somos ateos”.
Hoy por la mañana Pamela leyó la noticia otra vez, ahora en buen portugués, en un periódico de extrema-derecha comprado en un semáforo del centro de Curitiba. “Vaticano celebra um ano de sua morte”.
Ella casi no recordaba. “Habría pasado tanto tiempo”?
Y en aquella noche Pamela caminó por la plaza Tiradentes, y no había velas en las escaleras de la catedral metropolitana. Ninguna vigilia para recordar la fecha. Ella anduvo hasta el cansancio. Entonces se sentó, solitaria y sin rumbo en una de las largas escaleras.
El viento fresco de la madrugada le golpeaba la cara.
La voz de Julio soplaba en su oreja como si fuera noticia vieja.

(Ellos dijeron que jamás se olvidarían. Pero, igual que los periódicos, también los amantes mienten una y otra vez.)