sexta-feira, março 31, 2006

La noche que me quieras


“El tango, un pensamiento triste que se baila.”

É incrível como tudo pode dar errado, tudo pode inevitavelmente ir pelos ares em questão de instantes. As crianças, o emprego, nosso sólido casamento de doze anos, os gatos, as contas pendentes. Subitamente um homem com barba grisalha e casaco comprido surge tocando o bandoneón, arrancando-lhe as notas como quem rasga a seda de um vestido. É como se tudo tivesse a instabilidade de um tango, e fosse inverno, a estação preferida das lágrimas e desamores, e eu estivesse sentada naquele café fumando o cigarro impaciente como quem sempre irrompe atrasada na vida alheia.

Sim, a música. O compasso dois por quatro de um tango, esse pensamento triste que se baila. Eram nem sete horas e o céu já cinza-escuro, ele aproxima a banqueta e puxa um cigarro do maço num gesto inacabado e assim mesmo tão irritantemente completo, se ajeita ao lado do pianista e fere o bandoneón com as primeiras notas, soluçantes: Y todo a media luz/crepúsculo interior/que suave terciopelo/la media luz de amor.

Nada demorou para que nosso campo visual reciprocamente se encontrasse. Entre garçons desanimados trazendo cafés fumegantes e charutos da Nicarágua em bandejas de prata, nossos olhares felinos se cruzavam displicentes, inquietos, cheios de vergonha. Sorríamos ao som da mais triste melodia de Gardel; mantínhamos os minutos suspensos batendo cinzas de cigarro sincronizadamente; éramos espelhos dispostos nas extremidades do salão, encarando-se na penumbra da noite úmida e esfumaçante. Fumando espero/
a la que tanto quiero/Dame el humo de tu boca/dame que en mi/pasión provoca.

Soubemos desde o princípio que a música nos salvara. Mas jamais poderíamos saber que nos próximos meses nos encontraríamos, nos buscaríamos entre os tropeços incertos do tango até que o inverno terminasse.

As horas pareciam infinitas ao som de Pugliese. O relógio indo e vindo e nós ficando. Sempre a mesma mesa de canto e você golpeando o bandoneón do outro lado da sala, de onde me olhava e então lançava gentilmente a nossa música, bastando um breve gesto de pálpebras.
Durou meses sem você saber. Eu deixava as crianças na casa de mamãe e inventava qualquer urgência inadiável. Então eu o encontraria naquele café e a cidade seria só nossa, assim como a música e o inverno, esses temas encantados e misteriosos que não têm dono e por isso nos apropriamos deles. Jamais nos tocamos, tampouco soube seu nome pra não precisar defini-lo ou limitá-lo.

Às vezes penso que tudo não passou de um jogo, algo que criamos para esperar o inverno passar. Mas não me peça, eu não posso voltar pra casa agora. Não esquece de alimentar os gatos e pagar as contas que ficaram. Visitarei as crianças na primavera.
Eu sinto muito, um dia você irá me perdoar.

sexta-feira, março 24, 2006

O sujeito dos olhos quase aposentados

Aprendi a fazer palavras na mesma epóca que aprendi a cavar na areia da praia para fazer castelos. Eu era um menino um pouco tonto. Fui cagado por dentro. Cheguei a entregar areia molhada da praia no dever pra professora. Cheguei a cavar palavras e enterrá-las esperando nascer poesias. De vez em quando até minha mão direita desistia de mim. Eu, nervoso escondia a esquerda para ela não ter exemplo a seguir. Cresci assim. Outro dia, fui comprar queijo ralado para o macarrão e me perdi. Não sabia voltar. Perguntava aos porteiros dos prédios e nenhum sabia me ajudar. O macarrão e as pessoas me esperando. Eu sou uma pessoa que pode se perder a qualquer momento. Não tenho pé-no-chão disse um amigo. Eu tenho sim. Mas é outro chão que eu piso.

(uma cambalhota de Vitor Freire)

segunda-feira, março 20, 2006

Hace un año que...

25/03/2005
El mundo es ancho y ajeno

Todo mundo sabe, a cozinha é o melhor lugar da casa. Soube disso ainda pequena, quando sentava com a bisa Rosa em sua velha casinha de madeira na campina do siqueira pra comer broa sentindo o bafo quente do fogao à lenha. Quase vinte anos depois, e apesar de ser tão habilidosa cozinhando quanto um enxadrista lutando sumô, passei por muitas e diversas cozinhas até chegar à de dona Angela, que vive com suas quatro filhas mulheres numa ilha tranquila do lago Titikaka. A cozinha de dona Angela fica numa parte isolada da casa e não tem luz elétrica, como toda a ilha de Amantaní, mas em seu teto de zinco há uma porção de furinhos que deixam entrar feixes naturais de luz, e assim se pode ver panelas de ferro, tijelas de barro, uma boneca suja e sem uma perna abandonada no canto escuro, maços de plantas e ervas que em poucos minutos virarão chá. Quando chegamos em sua casa no sábado de manhã, Irma, a mais velha das quatro filhas, preparou nosso almoço na Uncha, um pequeno fogao de barro que deixa tudo más rico: ovos cozidos, batatas, oca - um tipo de tubérculo meio doce - e sopa de quinua, cereal muito usado na culinária andina. Logo em seguida a pequena Fabíola veio nos cumprimentar, sorrindo contente para os visitantes. Fabíola tem 3 anos e é a única neta de dona Angela. Suspeito também que seja a dona da boneca sem perna. Irma e Ester, a mamãe de Fabíola, conversavam em quechua quando senti um perfume saindo da chaleira. Irma explicou que fazia um chá de muña, "-bom pro estômago e cansaço". Depois percebi que as cholas sempre trazem um galhinho no avental pra cheirar enquanto sobem e descem os morros de Amantaní, e fizemos isso também, ainda que fosse só uma desculpa pra sentir o delicioso aroma da muña. Irma conta que sua terra foi batizada de Amantaní porque os Incas se "amaram" muito quando ali chegaram. Não posso acreditar nessa versao porque os Incas falavam quechua e não castellano, ainda que seja uma história bonita. De tarde caminhamos por boa parte da ilha. Vimos templos onde os antigos shamans faziam rituais para a deusa da terra Pachamama, oferecendo sangue de lhama e flores em troca de uma boa colheita. Vimos homens pequenininhos carregando nas costas 10 quilos de pedra para construir uma calçada turística. Diz-se que um deles ficou mudo de felicidade ao receber um relógio de presente. E que em alguma parte da ilha de Amantaní um turista se sentia livre por arrancar do pulso essa prisão, esse calaboço de tempo. De noite jantamos à luz de vela em nosso quarto, de onde se vê o imenso lago Titikaka pela janelinha quadrada. E logo veio Irma apertar minha cintura numa saia de chola e me vestir com trajes típicos, enquanto Pedro recebia de nossa anfitriã gorro e poncho coloridos. Assim disfarçados e com a pança cheia de quinua, fomos levados a uma festa local onde dançamos os hueños amantanienes bebendo uma cerveja cusqueña bastante quente. No dia seguinte Ester nos traz o café da manha, um último mimo aos viajantes. Chove muito e temos que partir. Do trapiche, as cholas se despedem com tristes acenos. Do barco, japoneses-belgas-peruanos-ingleses-galegos-brasileiros respondem com um lago inteiro dentro dos olhos.
São sete e meia da manhã, mas isso nao sabemos. Pedro deixou seu relógio na ilha de Amantaní pra sempre.

publicado em www.aindanaestrada.theblog.com.br

sexta-feira, março 17, 2006

praça: fragmento #2


Foto: mari sanchez
Palavras: gil brandão


O velho senta-se no banco da praça,
os olhos perdidos nas sombras do chão.

Seu rosto reflete a memória das coisas que não voltam mais.
Trêmulo, ele seca uma lágrima.
Inundado por lembranças, nomes e rostos de obtuários do jornal,
tantas mortes.
O tempo é a máquina invencível; ele o seu espelho.
Ilha de lembranças prestes a submergir.
Para sempre.

sexta-feira, março 10, 2006

Praça: fragmento #1


Foto: mari sanchez
Palavras: gil brandão


São as mesmas calçadas, o mesmo caminho de sempre.
Imagens que eu vejo todo dia; dia após dia.
Mas há alguma coisa com o ar, ele está mais puro.
Como se tivesse acabado de chover e o mundo
despertasse novamente. Eu já vi esse meu rosto
milhares de vezes, cada manhã da minha vida.
E tenho certeza de que estes olhos não eram tão
claros, nem sequer brilhavam.
Alguma coisa mudou.
É como se o mundo tivesse sido criado de novo.

quarta-feira, março 01, 2006

Ni el sueño y su pueblo de imágenes rotas,
ni el delirio y su espuma profética,
ni el amor con sus dientes y uñas nos bastan.
Más allá de nosotros,
en las fronteras del ser y el estar,
una vida más vida nos reclama.
("Más Allá del Amor", Octavio Paz)